(Para os peregrinos no tempo, a verdade está lá em outro lugar; o lugar verdadeiro é sempre um pouco mais longe, um pouco mais tarde. Onde quer que o peregrino esteja não é esse o lugar onde deveria estar, nem o lugar onde está em sonhos. A distância entre o mundo verdadeiro e este mundo aqui e agora é tecida por uma divergência entre o que deve ser levado a cabo e o que foi.)
(O peregrino viajante refletindo consigo, fala:). -Para que pode servir a cidade?... (ele pensa... pensa... e pensa...).
-Só as ruas fazem sentido, mas não as casas.
(Porque as casas tentam o errante cansado a repousar e a aquietar-se, a esquecer do porto de destino ou a adiá-lo indefinidamente. Todavia, as próprias ruas podem revelar-se obstáculos em vez de meios auxiliares, armadilhas mais do que vias de passagem. Podem desorientar o caminhante, afastá-lo da sua senda estreita, extraviá-lo.).
-Somos peregrinos no tempo... Somos peregrinos façamos o que fizermos, e pouco podemos fazer a esse respeito ainda que muito o queiramos.
(A vida na terra não é mais do que um breve trecho de abertura.).
-Fundamentalmente, não foi a ser daqui que fomos destinados — e só essa parte de nós que foi destinada ao alhures é digna de preocupação e de cuidado.
(São poucos os que desejam, e são capazes de, compor eles próprios este breve trecho de abertura terreno, em harmonia com a música das esferas celestes — de fazer da sua sorte um destino conscientemente desposado. Esses poucos necessitam de evitar as distrações da cidade.).
-É o deserto o habitat que devemos escolher. O deserto situava-se distante da agitação confusa da vida quotidiana, longe da cidade e da aldeia, do reino do mundano, da polis.
(O deserto significaria a posição de uma distância entre nós próprios e o “aqui”, entre outras coisas...).
-Aqui, na quotidianidade mundana, temos as mãos ligadas, e o mesmo se passa com os nossos pensamentos. Aqui, o horizonte estava pesadamente tapado por cabanas, celeiros, capoeiras, pomares e campanários de igreja. Aqui, onde quer que nos movêssemos, estávamos num lugar, e estar num lugar significava estar onde se estava a fazer aquilo que era necessário fazer no lugar.
(O deserto [ao contrário] era uma terra ainda não talhada em lugares, razão pela qual era a terra da autocriação. O deserto era o espaço onde um passo se apaga perante o seguinte, que o desfaz, e o horizonte significa a esperança de um amanhã que fala. Ninguém vai para o deserto para descobrir a sua identidade pronta, mas para perdê-la, perder a sua personalidade, tornar-se anônimo... Depois se produz qualquer coisa de extraordinário: ouve-se falar o silêncio).
-O deserto é o arquétipo e o viveiro da liberdade crua, nua, primitiva e essencial que não é senão a ausência de limites.
(Com deserto, o mundo tornava-se sem lugar; os traços familiares são obliterados, mas outros novos vêm substituí-los.)
-Mas... Como ir para o deserto, se ele esta tão longe desta terra?
(A diferença agora estava em que, em vez de viajar para o deserto, o peregrino trabalhava duramente por fazer com que ele viesse até ele.)
-Já sei... Eis que vou trazer o deserto até mim.
(O solitário peregrino torna-se então "peregrino intra-mundanos" nesta terra. Pois que ele Inventa uma maneira de embarcar na peregrinação sem sair de casa. Só o pudera fazer, contudo, porque o deserto crescera e invadia rente ao limiar da sua casa.)
(Viajando, neste outro e, novo deserto e, dentro desta terra, o peregrino tem fé que assim, como outros outrora, ele espera que:).
-Que o nada se transforme e se torna alguma coisa (ainda que só por um momento;). Que ausência de significação, venha receber algum significado (ainda que passageira;). Que um espaço desprovido de contornos (disposto a aceitar qualquer contorno que se lhe ofereça), que seja um espaço sem as cicatrizes de sulcos antigos, mas fértil em expectativas de duras relhas de arado; Que seja essa uma terra virgem (mas disponível para ser lavrada e trabalhada;) a terra de um recomeço perpétuo; do lugar-não-lugar cujo nome e identidade ainda não existe.
(Numa terra assim, correntemente chamada modernidade ou pós-modernidade, a peregrinação do nosso peregrino já não é uma escolha do modo de vida, e menos ainda uma escolha heroica... A peregrinação torna-se qualquer coisa que se faz por necessidade, ainda que o impulso recebido se transforme miraculosamente em atração e que o inevitável se transforme em finalidade. Nesta condição:).
-Como peregrino, posso fazer um pouco mais do que apenas andar — posso "andar para". Posso igualmente olhar os traços que deixo para trás de mim na areia e chamar-lhes estrada. Posso meditar sobre a estrada passada e falar dela como de um progresso rumo a, um avanço, uma "aproximação de"; Posso introduzir uma distinção entre “para trás” e “para a frente”, e conceber a estrada que se avança como uma sucessão de passos que deverão ainda marcar a terra não marcada.
(O destino, o, fim declarado desse viajante da vida, dá uma forma ao que a não tem, torna o fragmentário totalidade, confere continuidade ao episódico. O mundo assimilado ao deserto estipula que a vida seja vivida como peregrinação. Mas...).
-Sabendo que, uma vez que a vida se transforma em peregrinação, O mundo à porta de casa é como o deserto, sem traços; O seu sentido está ainda por dar-se através da errança que o transformará no trilho que leva até à linha de chegada onde mora o sentido.
(A este "fazer entrar em campo" do sentido chamou-se "construção da identidade". O peregrino e o mundo assimilado ao deserto que ele trilha adquirem, então, conjuntamente os seus sentidos, e adquirem-nos através um do outro. Os dois processos podem e devem avançar porque há uma distância entre o alvo e o momento presente.)
-Creio que tenho uma longa distancia a percorrer.
(Tanto o sentido como a identidade, o peregrino sabe que, só podem existir como projetos, e a distância que faz com que os projetos possam existir. A distância é aquilo a que se chama, a experiência em termos "subjetivos".).
O PEREGRINO
ResponderExcluir(Para os peregrinos no tempo, a verdade está lá em outro lugar; o lugar verdadeiro é sempre um pouco mais longe, um pouco mais tarde. Onde quer que o peregrino esteja não é esse o lugar onde deveria estar, nem o lugar onde está em sonhos. A distância entre o mundo verdadeiro e este mundo aqui e agora é tecida por uma divergência entre o que deve ser levado a cabo e o que foi.)
(O peregrino viajante refletindo consigo, fala:).
-Para que pode servir a cidade?...
(ele pensa... pensa... e pensa...).
-Só as ruas fazem sentido, mas não as casas.
(Porque as casas tentam o errante cansado a repousar e a aquietar-se, a esquecer do porto de destino ou a adiá-lo indefinidamente. Todavia, as próprias ruas podem revelar-se obstáculos em vez de meios auxiliares, armadilhas mais do que vias de passagem. Podem desorientar o caminhante, afastá-lo da sua senda estreita, extraviá-lo.).
-Somos peregrinos no tempo...
Somos peregrinos façamos o que fizermos, e pouco podemos fazer a esse respeito ainda que muito o queiramos.
(A vida na terra não é mais do que um breve trecho de abertura.).
-Fundamentalmente, não foi a ser daqui que fomos destinados — e só essa parte de nós que foi destinada ao alhures é digna de preocupação e de cuidado.
(São poucos os que desejam, e são capazes de, compor eles próprios este breve trecho de abertura terreno, em harmonia com a música das esferas celestes — de fazer da sua sorte um destino conscientemente desposado. Esses poucos necessitam de evitar as distrações da cidade.).
-É o deserto o habitat que devemos escolher.
O deserto situava-se distante da agitação confusa da vida quotidiana, longe da cidade e da aldeia, do reino do mundano, da polis.
(O deserto significaria a posição de uma distância entre nós próprios e o “aqui”, entre outras coisas...).
-Aqui, na quotidianidade mundana, temos as mãos ligadas, e o mesmo se passa com os nossos pensamentos.
Aqui, o horizonte estava pesadamente tapado por cabanas, celeiros, capoeiras, pomares e campanários de igreja.
Aqui, onde quer que nos movêssemos, estávamos num lugar, e estar num lugar significava estar onde se estava a fazer aquilo que era necessário fazer no lugar.
(O deserto [ao contrário] era uma terra ainda não talhada em lugares, razão pela qual era a terra da autocriação. O deserto era o espaço onde um passo se apaga perante o seguinte, que o desfaz, e o horizonte significa a esperança de um amanhã que fala. Ninguém vai para o deserto para descobrir a sua identidade pronta, mas para perdê-la, perder a sua personalidade, tornar-se anônimo... Depois se produz qualquer coisa de extraordinário: ouve-se falar o silêncio).
-O deserto é o arquétipo e o viveiro da liberdade crua, nua, primitiva e essencial que não é senão a ausência de limites.
(Com deserto, o mundo tornava-se sem lugar; os traços familiares são obliterados, mas outros novos vêm substituí-los.)
-Mas... Como ir para o deserto, se ele esta tão longe desta terra?
(A diferença agora estava em que, em vez de viajar para o deserto, o peregrino trabalhava duramente por fazer com que ele viesse até ele.)
-Já sei... Eis que vou trazer o deserto até mim.
(O solitário peregrino torna-se então "peregrino intra-mundanos" nesta terra. Pois que ele Inventa uma maneira de embarcar na peregrinação sem sair de casa. Só o pudera fazer, contudo, porque o deserto crescera e invadia rente ao limiar da sua casa.)
(Viajando, neste outro e, novo deserto e, dentro desta terra, o peregrino tem fé que assim, como outros outrora, ele espera que:).
ResponderExcluir-Que o nada se transforme e se torna alguma coisa (ainda que só por um momento;).
Que ausência de significação, venha receber algum significado (ainda que passageira;).
Que um espaço desprovido de contornos (disposto a aceitar qualquer contorno que se lhe ofereça), que seja um espaço sem as cicatrizes de sulcos antigos, mas fértil em expectativas de duras relhas de arado;
Que seja essa uma terra virgem (mas disponível para ser lavrada e trabalhada;) a terra de um recomeço perpétuo; do lugar-não-lugar cujo nome e identidade ainda não existe.
(Numa terra assim, correntemente chamada modernidade ou pós-modernidade, a peregrinação do nosso peregrino já não é uma escolha do modo de vida, e menos ainda uma escolha heroica... A peregrinação torna-se qualquer coisa que se faz por necessidade, ainda que o impulso recebido se transforme miraculosamente em atração e que o inevitável se transforme em finalidade. Nesta condição:).
-Como peregrino, posso fazer um pouco mais do que apenas andar — posso "andar para".
Posso igualmente olhar os traços que deixo para trás de mim na areia e chamar-lhes estrada.
Posso meditar sobre a estrada passada e falar dela como de um progresso rumo a, um avanço, uma "aproximação de";
Posso introduzir uma distinção entre “para trás” e “para a frente”, e conceber a estrada que se avança como uma sucessão de passos que deverão ainda marcar a terra não marcada.
(O destino, o, fim declarado desse viajante da vida, dá uma forma ao que a não tem, torna o fragmentário totalidade, confere continuidade ao episódico. O mundo assimilado ao deserto estipula que a vida seja vivida como peregrinação. Mas...).
-Sabendo que, uma vez que a vida se transforma em peregrinação,
O mundo à porta de casa é como o deserto, sem traços;
O seu sentido está ainda por dar-se através da errança que o transformará no trilho que leva até à linha de chegada onde mora o sentido.
(A este "fazer entrar em campo" do sentido chamou-se "construção da identidade". O peregrino e o mundo assimilado ao deserto que ele trilha adquirem, então, conjuntamente os seus sentidos, e adquirem-nos através um do outro. Os dois processos podem e devem avançar porque há uma distância entre o alvo e o momento presente.)
-Creio que tenho uma longa distancia a percorrer.
(Tanto o sentido como a identidade, o peregrino sabe que, só podem existir como projetos, e a distância que faz com que os projetos possam existir. A distância é aquilo a que se chama, a experiência em termos "subjetivos".).
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Por Thiago L.